domingo, 29 de agosto de 2021

Cinzas


Você diz que é fogo, mas perto de ti não queimo. Te tenho nas mãos no isqueiro, no vício, na vela, no brilho que perfuma o incenso e não te sinto. 

Mente que é meu abrigo, meu melhor amigo. Não vê que me vê como espelho. Não vê que é uma fagulha e que não me aquece.

Você diz que é fogo, não vê que bate pedras quebradiças sobre gravetos úmidos. Não resiste aos meus ventos, a ponta dos teus dedos evapora antes de tocar minhas tempestades. Você diz que é fogo enquanto me perco no escuro; nem sequer me ilumina, não te encontro nem pelo brilho do olhar. 

Espera que eu te sopre, que te ateie, te alimente, que te mantenha por toda a noite escura e seja desde a primeira fagulha até o último suspiro ardente no ar da manhã. Espera que te dê a coragem necessária para destruir.

Olha para mim e clama ser fogo, não vê que não sou espelho. Se aproxima de mim e não percebe que a maciez pálida e reconfortante sob seus pés são vestígios de meus incêndios. Que tudo já ardeu, terra arrasada por minhas chamas. Fosse fogo, eu me refaria todos os dias do pó para ser devorada novamente a cada anoitecer. O céu viveria encoberto pelo vapor de minhas ruínas. Mas fui eu quem cobriu o céu com a névoa do que foi a tua vaidade. 

Como pode dizer que é fogo se jamais clareou o caminho pr’eu te encontrar? Como se atreve se a tua presença invade meu ardor e é teu frio que me alcança?

Não tem o calor que abraça, não inflama uma brasa no meu peito, não derrete minha pele ao toque. 

Nunca acendeu.