Hoje ele chegou em casa e
repassou a semana na mente. Todas aquelas noites em claro. Já se acostumou a
conciliar estudos, provas, projetos, trabalho extra a fazer em casa, mil
obrigações a cumprir. A sala, o quarto, a cozinha, toda e qualquer parte do
cubículo solitário em que vivia estavam em quase completo abandono. Falta de
tempo. Pela mesma falta de tempo, só seus livros e discos estavam no lugar.
Sequer pôde dar play em alguma trilha sonora pra embalar sua solidão.
Ela já havia combinado a
saída com um grupo de amigos na semana passada. Precisava estar com eles,
preencher com conversas supérfluas o vazio que alguém há pouco tempo deixou em
seu peito. “Precisa ser assim” pensou, durante o banho rápido pra não se
atrasar. “Pelo menos as coisas ficam um pouco mais fáceis quando tenho
companhia”. Saiu do banho, soltou os cabelos, realçou os lábios e cobriu o
corpo com o vestido mais leve e confortável. Não precisava exagerar. Ainda era
muito cedo pra que alguém a achasse atraente.
O celular dele apitou.
Algum amigo perguntando sobre seu sumiço. “Arranjou alguma garota e não quer
nos apresentar? Hoje vamos pro mesmo lugar de sempre, nos encontre lá. P.S.: pode
convidá-la.” Não havia garota. Havia apenas os degraus que ele precisava subir
sozinho pra alcançar seus sonhos, lá longe. Precisava fazer isso sozinho e
ocupar todo o tempo possível, mas hoje poderia sair com os amigos. Não queria
perdê-los ou chateá-los, eram poucos.
O interfone tocou e ela
não seu deu ao trabalho de atendê-lo. Não precisava pedir para que esperassem
mais cinco minutinhos, estava pronta. Em menos de quinze minutos, ela e seus
amigos já dividiam uma mesa no cantinho do estabelecimento (indefinido, era um
lugar tranqüilo, um misto de cafeteria-bar-com-um-palco-pra-showzinhos-e-vexames-no-karaokê;
barfeteria), ali, perto do palco. Todos
gostavam de música, independente de quem aparecesse ali pra errar notas ou
desafinar no refrão.
Ele foi com os amigos,
que sempre cometiam a mesma estupidez: encontravam-se naquele barzinho estranho
e aconchegante e logo partiam pra algo mais agitado. Gostava de todos e da
companhia deles, mas depois de noites insones com a mente oscilando entre
aprendizado e solução de problemas, não era numa noitada vazia com os amigos
que gastaria suas energias. Preferia mesmo era poder conversar, mas acabou sozinho,
migrando da mesa para o balcão. Em algumas poucas noites deixado sozinho (sim,
porque quis) pelos amigos, quase já havia conhecido o barman; tragicômico. Não
tão ruim, isso pelo menos não o deixava desconfortável.
Bem-resolvida, ela já
sabia que voltaria para casa sozinha; não via problema algum nisso. Era o que
queria, o que precisava. Alguns amigos já haviam se despedido, então o cansaço
a ajudou a decidir por se despedir também. Todo dia é quase uma vida nova e,
começando por amanhã, ela ainda tem muito a resolver. Visitar a família,
procurar na livraria os títulos de alguma lista, pagar contas, perder alguns
minutos em frente ao computador procurando algum show que lhe dará horas de
satisfação, talvez até dias. Tem vontade de aprender algo novo, talvez logo
providencie alguma matrícula. E tudo o que tinha a resolver desapareceu de sua
mente enquanto deixava seus amigos em direção à porta.
Se eles tivessem prestado
mais atenção ao que acontecia ao redor, talvez tivessem percebido um ao outro.
Ele teria reparado naquele vestido inapropriado para um barzinho, mas
completamente apropriado ao corpo esguio e delicado dela. Ela teria reparado
que ele tinha a barba por fazer, desleixo lhe conferia certo charme. A noite
inteira, ela sorriu seu sorriso mais bonito; ele, um pouco preguiçoso, prestou
atenção em tudo o que os amigos diziam, com aquele olhar de quem quer sempre
aprender. Gestos, camisetas, sapatos, sorrisos, testas franzidas, expressões
bobas ou envergonhadas, mãos sem um destino. Esses detalhes e tantos outros
mais de quem não se vê acabam passando despercebidos.
Ela a caminho da porta,
ele ao balcão. Ambos vítimas de leve embriaguez, tanto do álcool quanto da
distração pela quebra de rotina. Ali trocaram um olhar. Duradouro, sem querer,
por ambas as partes. Pareciam ter a mesma expressão e, por um momento,
entenderem um ao outro. Ninguém pestanejou, o diâmetro das pupilas talvez tenha
oscilado. Como se fosse a primeira e a última vez que se encontrassem – sem querer.
A excitação pelo desconhecido e o adeus. Como todos os olhares de um eterno
romance, resumido num único olhar de dois desconhecidos.